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RIBEIRINHOS
Sobre Estrutura, Missão e Igreja
Há uma importante questão a se considerar: a igreja ribeirinha deve ser voluntária. Quero dizer com o termo “voluntária” que a necessidade de se ter ou não uma igreja deve surgir da própria comunidade.
O objetivo da Missão deve ser, simplesmente, comunicar o evangelho (como se isso fosse algo simplório) da forma mais pura de que formos capazes. Não podemos fugir desse propósito. Nossa abordagem deve ser simples, amorosa e cristocêntrica. Comunicar Cristo é nossa missão. A necessidade de se ter ou não um lugar de reuniões (“igreja”), deve vir do povo como resultado da mensagem percebida por eles. Essa necessidade não deve ser “lida” e imposta pelo missionário, mas sim pelo povo local.
Nunca é exagero lembrar que o proposito maior é a comunicação da mensagem, e que Deus tem compromisso com essa mensagem. Todas as demais coisas da Missão: a estrutura física, os barcos, os trabalhos braçais, etc. são ferramentas para o cumprimento do proposito essencial. Nada dessa estrutura é essencial, apenas ferramental, e só será útil se existir e servir para o fim da comunicação. Ainda insistindo nessa complexa relação da estrutura com a missão, é importante lembrar que a presença da estrutura organizacional da agencia ou igreja, não significa a presença do evangelho. Mais ainda, não se pode perder de vista o entendimento de que o compromisso de Deus conosco não se refere a essa estrutura, mas ao fato de nos atermos às coisas de seu Reino. A estrutura só entra nesse compromisso quando se atém ao claro proposito de existir em função da mensagem e quando não é confundida com ela. A mensagem está acima da estrutura, mesmo que transite no meio dela ou que se efetive através dela.
Eliel EM


RIBEIRINHOS
SOBRE REMANSO E CULTURA
Fatores de tensão
O caso de Mariela
Conheci Mariela há alguns anos, quando ainda era uma pré-adolescente. Lembro-me dela correndo pelas gramadas ruas de Remanso. Sempre foi bela, olhos grandes e oblíquos, característica anatômica do seu povo. O diferencial no rosto dela era os lábios, grossos e bonitos demais para o anonimato de sua vila.
Mariela é a fatia de um bolo único, o pedaço visível das jovens de sua idade. Casou-se cedo, aos 15 ou 16 anos de idade. O marido, um jovem pescador, daqueles meninos que vi jogando futebol na cancha da beira do rio, o menino que vinha às reuniões da Missão e ficava embevecido pelas moças da equipe. Ele é Pablo, pouco mais que um adolescente, encantou-se pelos lábios grossos da guapa ribeirinha. O namoro começou na escola e firmou-se nos barrancos do Rio. Junto a essa paixão, a pobreza cortante de suas casas. Mariela dormia numa espuma infestada de ácaros que lhe enchia o corpo de coceiras, mas, sonhava com um mundo diferente na companhia de Pablo. Durante o dia, pobreza e discussão, solidão e discussão, tudo e discussão... O pai raramente estava sóbrio, bebia e mascava bolo o tempo todo. Ela tinha asco de suas cusparadas esverdeadas. Quando zangado, enfiava na boca o dedo branco de bicarbonato para se misturar à hoja. E ele estava zangado o tempo todo. Cuspia e xingava o tempo inteiro. A menina tinha dó da solidão da mãe e da aspereza do pai. Ele, bebendo e xingando, ela, chorando e o traindo às escondidas quando ia ao chaco buscar iúca ou plátano. No fundo, pensava ela, eram dois infelizes que morriam juntos na pobreza extrema de suas almas e seus casebres. À noite, antes de dormir, encontrava-se às escondidas com Pablo. Junto dele, sonhava com uma vida diferente, com palavras suaves e pessoas mais suaves, uma casa grande, limpa, comida com fartura e chuveiro com água quente.
A vida de Pablo não era diferente em muita coisa da de Mariela. A mãe era boa, não traía e nem xingava, mas também desgastava a vida num casamento brutal. O marido sim, esse era brutal como o mais secreto desejo de vingança que sorrateiramente visitava pensamentos da esposa infeliz. Batia na esposa, batia nos sete filhos, batia em Pablo. Batia na vida. Dentro daquela tapera imunda e pobre, a vida corria contra a pouca comida, pouca roupa e nada de esperança. Pablo amava a mãe e ajudava como podia, mas também sonhava com o dia em que deixaria tudo aquilo para trás. Pensava na cidade grande, na nova vida em Santa Cruz de la Sierra. Lá estava seu futuro e seus sonhos, longe da pobreza, das horas sem fim das tardes quentes de Remanso. Foi aí que Mariela entrou em sua vida.
A paixão e o sexo foram fulminantes. Os sonhos dela e dele ainda resistiram algum tempo no casamento precoce. Mas não durou muito. Foram morar numa tapera com pouca comida, pouca roupa e uma réstia de esperança. O pouco foi esmorecendo na brutal realidade e apagando a paixão de seus corpos. Pablo quis resistir e foi pescar. Mariela chorou por noites inteiras a esperança que via esvair-se. Vieram os filhos e as asperezas, um após o outro, um filho a cada ano, uma brutalidade a cada dia. Quatro crianças famintas, cinco anos de labuta, e nenhum sonho pôde resistir a tanto. Pobre Pablo e pobre Mariela. Ele, de bolo na boca e bicarbonato no dedo, repetia a zanga do sogro. Ela, pobre dela, repetia o desconsolo e as traições da mãe. Os grandes lábios grossos ainda eram belos, mas já não riam com aquela irreverencia de quem sonha. Tornaram-se ácidos e velhos demais para tão pouca idade.
Ela tinha vinte e três anos quando Pablo morreu. Lá, diante do caixão de tábuas serradas a motor, seu rosto dizia que tinha mais de trinta. Pablo morreu no rio, picado por uma víbora. Ela chorou no enterro, mas a dor repartia um cômodo secreto com o alívio. Esse despojo estranho, de quem levava um prêmio pela luta de um casamento tão bruto. O alívio era pelo fim das discussões, da cara borracha e das cusparadas esverdeadas. A dor era por algo mais profundo, pelo sonho que morreu, pela esperança que se foi rio abaixo. Pablo se foi aos vinte e cinco anos, pai de quatro filhos pequenos e cansado como ninguém poderia estar em tão tenra idade.
“La víbora lo mató” – Pensava a mãe do rapaz, vendo Mariela e os quatro rebentos na beira do túmulo.
Encontrei-a cerca de dois anos depois do enterro. Foi numa reunião alegre em um dos projetos da Missão na beira do rio. Eu falava com uma mulher de pouco mais de cinquenta anos quando Mariela entrou. A tal mulher dos cinquenta e poucos anos chorou ao vê-la chegar em companhia do novo marido. Mariela estava grávida do quinto filho, lábios ainda mais grossos por causa da gravidez avançada. A mulher dos cinquenta anos foi gentil com meu encanto por Mariela, mas não escondeu sua mágoa. O marido novo da moça era seu velho marido que, embevecido pelos lábios da minha antiga amiga, deixou sua casa e foi aninhar-se na casa da outra. Deixou-a com três filhos para assumir os quatro de Mariela. Agora, feliz, vinha expor a barriga do quinto filho dela, mas o primeiro seu com a nova mulher. O choro da mulher tinha rumo. Tinha filhos para cuidar e tempo de menos para um marido, não tinha lábios como aqueles para seduzir ninguém, por isso a vida se lhe apresentava brutal. Estava só pelo resto dos seus dias a criar os filhos largados. Vi o riso desconfiado de Mariela, pois bem sabia o destino da outra. Seus belos olhos oblíquos já não eram os mesmos, estavam impregnados daquele banzo de quem desaprendera a sonhar, de quem atirara seus valores ao chão para negociar com a sobrevivência. Ela não sabe por quanto tempo resistirá às zangas e borrachices do novo marido e, muito menos, há quantas aventuras extraconjugais ela mesma conduzirá o casamento. Fui lá, beijei-lhe a mão, lembrei-a dos idos dias da adolescência. Ela sorriu, apresentou-me ao marido, não sei se doeu-lhe como a mim. De certa forma, pareceu-me ainda viúva. Foi embora na escuridão de Remanso, sem saber o quanto me doeu sua miséria.
Mariela, Pablo, o novo marido e a mulher com mais de cinquenta, são nichos no meio do todo. Os filhos dessa ciranda repetirão o modelo. Suas vidas oferecem a leitura cultural do povo de Remanso no que diz respeito ao casamento, parentesco e estrutura familiar. Essa complexa relação de parentesco, fundamentada na ideia do casamento, é, talvez, o maior agente de solidão. É daí que brota a relação dos filhos, a função de paternidade e maternidade. A mãe se vira como pode para proteger sua prole e tudo faz para colocar comida em suas bocas. Isso inclui arrumar um marido, qualquer que seja, a qualquer preço. O marido, com as raras e devidas exceções, até que luta para ser bom, mas vem a cachaça e a folha de coca, as prostitutas outras, e o arrastam a repetir a mesma aspereza que tanto temeu do pai na infância. Ele busca cura, onde for e de que modo for, seja na aventura sexual, na troca com outra casada ou até na boca de uma víbora. Em meio a tudo isso, crescem los niños, em muitos casos, muitos mesmo, em meio a pouca comida, pouca roupa, sobra de aspereza. Porém, nunca é pouco lembrar, crescem com aquela nesga de esperança que risca o olhar oblíquo do adolescente ribeirinho nas margens do Guaporé.
Eliel Eugênio de Morais

MISSÃO, EVANGELHO E IGREJA
Uma conversa salgada
A missão é de Deus, não da igreja. A igreja é um mero instrumento da realização da missão. A aliança de Deus com as pessoas tem a ver com as coisas do Reino, que não são necessariamente as mesmas “coisas” da igreja. É aquela velha conversa de que igreja e instituição não é a mesma coisa. Uma é noiva e a outra é recurso, fatos da essência e da ferramenta. Tal discurso é desconfortável. O evangelho tem a ver com a noiva, não com o recurso.
Pensar na missão da igreja é se permitir ao “purgar” (no infinitivo – posto que é infinito) do evangelho. O evangelho tem a ver com as coisas do Reino. A presença da instituição não significa a presença do evangelho. A questão é melindrosa. Quem, na perspectiva saudável e bíblica de missões tem postado seus pés em campos como África, indígenas e ribeirinhos (os mais latentes para a igreja brasileira) perceberam a dor e o mal causado pela confusão de estrutura e evangelho. O evangelho pensa transformação enquanto que a estrutura pensa expansão. Um é essência e o outro é colonialismo. Isso não deveria ser simples? A não percepção dessas coisas demonstra que não, e o resultado é o sincretismo escuro e nada transformador que a igreja tem deixado como legado de sua presença nos campos brancos dos indígenas, ribeirinhos e África.
O evangelho tem a ver com Cristo e as coisas do Reino. Não tem a ver com a igreja. Igreja e evangelho não é a mesma coisa, como o tubo e a água não são da mesma essência. Um é vida e o outro é meio, um é fim e o outro é ferramenta. A simplicidade desse conceito me assombra, pois a liberdade que isso acarreta desconforta a igreja. A igreja tem problemas em lidar com a liberdade. O evangelho liberta, a igreja controla. É doloroso ver que muitas de nossas ovelhas, pastores e missionários de campo, amam mais o controle do que o evangelho, abrem mão do poder extraordinário do Espírito Santo e das Escrituras para se fartarem num insosso prato de controle.
O evangelho estende seu braço de aliança às coisas do Cristo e seu Reino. É claro que isso se parece com comida salgada que, uma vez posta dentro da boca, produz duas das mais preciosas verdades do evangelho: desconforto e sede! É isso mesmo, o evangelho nos tira dessa zona controlada e segura e lança nossas pobres e imerecidas almas ao magnificente campo da perturbação, às inesgotáveis espigas da sede... A gente come e bebe, e quer de novo... E quem controla isso se o vento sopra onde quer e para onde quer? Qual é a comida e bebida dessa conversa? O Espírito Santo e as Escrituras – Uma simplicidade constrangedora e absurdamente negligenciada em nome da parca controladoria da igreja. Por que fazer tal troca? Por que cambiar a excelência pelo medíocre? Porque mudar a missão e judiar dos campos? É deixar de lado a única alegria da igreja que é a habitação do Espírito, o que nos faz vivos, e não perceber o imarcescível conselho das Escrituras. E fazer isso em troca de um controle humano e perdido. Se é humano, é perdido...
A missão tem que ter suas agendas no evangelho. Se não for assim, é só controle, tentativa patética de controlar o que é incontrolável, porque Deus não se deixa governar pelo homem e pelo que não é da alçada do homem. A noiva tem seus enfeites e compromissos com o noivo e com as coisas do noivo. O que for além disso, pega o caminho da prostituição. A missão não é da igreja, como a noiva não pertence aos festeiros. A missão é de Deus e cabe à igreja a missão do servo, nada mais.
Eliel Eugênio de Morais
