BEM VINDO ÀS NOSSAS CRÔNICAS
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CONVERSA DE
CACHORRO
O vira-lata é o mais feliz de todos os cães. É livre, anda de cara para o sol e para a chuva, corre pelos becos, fuça em qualquer canto. Nenhum parasita o acomete com dor o suficiente para detê-lo. É um sobrevivente. O que são míseras pulgas ou grandalhões carrapatos para alguém de índole tão robusta? Não é assim o cachorrinho de apartamento. Tímido, chato, adoece simples e a toa, come o que lhe dão, nada lhe resta do sonho selvagem de ser um cão. É um produto, só ladra aos pés de seus amos. Pequenos seres vivos lhes são grandes ameaças, monstros invencíveis. Tenho dó deles.
Tenho dó dos pastores. Tenho dó de mim. Quase todos, fomos chamados para as ruas. Sonhamos com os becos, com as gostosuras e os perigos de lá, aquela insana e preciosa liberdade de dar a cara ao sol e à chuva. Porém, veio a igreja, madame rabugenta, e nos arrastou para seus apartamentos, nos pôs coleiras, deu-nos uma ração de cheiro insuportável, e quando inquirimos, disse que era bom para os pelos e que nossa saúde dependia disso. De cães vira-latas a domesticados, os mais infelizes dos cachorros. Que triste é o pastor que se deixa assim persuadir. Ah, não se trata da instituição em si, a madame é mais rabugenta que isso. Trata-se do povo local também. É essa carrocinha que tem uma preferência mórbida por cachorro de apartamento. Nada selvagem, nada livre, nada feliz, não exposto a nenhum perigo, apenas comendo ração e abanando o rabinho, do jeito que as madames gostam, bonitinhos de serem vistos na sala de estar.
Sou pastor e estou ladrando pelo cheiro da rua. Quero o cheiro da linguagem, pois tenho o cheiro do que vejo. Ah, que doloroso é me surpreender a ganir no púlpito e na solidão da poesia para não perder o cheiro daquela chamada primeira. Por que a igreja nos quer tirar isso? Por que deseja, no lugar de um pastor de verdade, um cachorrinho adestrado com cheiro de talco e sabonete? E a linguagem? Me vi assustado não mais sabendo falar a língua das escolas, dos ribeirinhos e do povo de fora. Aprendi a latir dentro de quatro paredes, e é um som diferente, estranho, quase triste. Por fim, vi o horizonte que a igreja deseja. É bem ali, pertinho, voltado para o lúdico do próprio ventre, seguro, sem grandes esforços e, muito menos, riscos, um perfume opaco de desinfetante, patético. Lá fora, eu via os becos, os rios, pessoas de perto e de longe, outra língua, outra coisa, quase outro Deus.
Sou um vira-lata, assim foi minha chamada primeva. Não posso com a ração, não posso com o talco, as adulações no sofá me matam. Amo o sol e a chuva, admiro o perigo, gosto do aroma do risco. Há uma selvageria pungente que me diz que sou chamado para fora, livre, impregnado do cheiro e dos perigos dos becos, feliz... Muito feliz por amar mais a rua do que as paredes seguras dos apartamentos. O cheiro de lá é melhor que o de cá. O que falo? Ah, perdoem, é minha linguagem, asfixiada pela domesticação, ela só me permitiu isso. É preciso morder a coleira.
Eliel Eugênio de Morais


Murro na Cabeça
Sobre uma africana
e o Reino dos Céus
Fim de tarde na linha férrea de Chimoio. Uma feira onde borbulha gente e cheiros e se vende de tudo. Tem cheiro de suor, de tangerinas, de verduras frescas e lixos velhos. Tem tudo, se ouve de tudo e se compra tudo. É uma correnteza de pessoas e intenções como jamais havia visto. Momentos antes, já havia me assustado com a vendedora de bananas, mas do susto para a dor tem uma diferença. E experimentei isso também.
Já soprava aquela brisa fria que marca o fim do sol e o começo da noite na África. Vi algumas crianças vendendo carvão, como é comum nas vilas e cidades. Eram dois meninos e uma menina, certamente irmãos. Pés descalços, cara nua na poeira, mãos sujas e pele cinzenta, destoando da pretude dominante. Vendiam e brincavam. A menor era só uma menininha de uns cinco anos de idade, linda e suja, escorria o nariz e esfregava o braço, espalhando a sujeira para o resto da carinha. Os olhos oblíquos, agressivos e pedintes, semelhante a um grito que ecoa. Grito de carência que ninguém vê. Quanta solidão naquela pequena pessoa! Tive ímpetos de ir até lá, dar-lhe algum dinheiro, fazer algo que, na minha brancura, pudesse dirimir sua solidão. Mas ela corria e brincava, levantando poeira nos pés descalços e espalhando a insistente coriza pela cara que me machucava.
Como pode a coisa ser assim? São coisas, no plural, múltiplas e complexas, como são as missões que Deus deu aos seus. Em um momento vi o mais velho vir na direção dela, mandou que recolhesse o carvão. Era hora de ir. Para onde? Talvez, alguma matchessa na periferia, ou, uma longa caminhada até a machamba perto do riacho. Lá um pouco de chima, pouca comida para tantas bocas. Depois, dormir amontoados na esteira fria, pouca coberta para tanto corpo. Talvez, fosse só a marquise de uma loja no centro, esquecendo esse negócio de matchessa e machamba, chima ou cobertor. Afinal, o dia amanheceria e tudo iria começar outra vez para quem quer que fosse. Foi assim que o grandão veio, foi rápido, falou e seguiu caminho. Os outros o seguiram e a pequena ficou sozinha ajuntando o carvão...
Ah, permita-me falar dos cabelos dela! Mesmo na poeira e na sujeira, eram lindos, com trancinhas apertadas que o espetavam para cima, amarradas em fitas coloridas... Porém, o grandão veio e interrompeu meu devaneio. Irado com a demora dela, esticou os dedos na direção daquele cabelo, alcançou uma das tranças e puxou com força. Ela gritou, mas ele segurou decidido e bateu com a outra mão... Ela chorou alto e misturou a lágrima com a coriza, tingindo o rostinho preto com o marrom do choro, parecendo máscara de festa africana. O irmão riu do pranto dela e foi andando. A dor dela doeu em mim!... Juntou o carvão, limpou o que pode das lágrimas barrentas e correu atrás dos outros levando solitária o peso. Afinal, para onde e para quem iria?
O Reino dos céus é semelhante a essa menina. Tem mistura de desconforto e beleza. Ela é figura de nós. Somos como ela, nossas almas são iguais. É o que Deus me dizia naquele momento. Primeiro, sua palavra desconforta, às vezes até machuca, para depois perguntar para onde a gente está indo. Sei das implicações missiológicas dessa conversa, mas desejo que pense numa outra dimensão, a da palavra que Deus traz a você e a mim. É só pensar no episódio da minha incógnita africaninha... Quanto desconforto e quantos novos horizontes abriu. O Reino dos céus falou através dela. Duvida? Procure o eco nas entrelinhas da história.
Eliel Eugênio de Morais
Pastor

Eu e ela
Ela me entristeceu!...
Estou triste com ela. Não entendo como, mas, de repente, tornou-se previsível e rasa. A surpreendi prostituindo-se com uma estúpida teologia de retribuição e parece não haver se dado conta disso, coisa de gente cega ou viciada. Para meu horror, fez-se hedônica, egoísta e satisfeita com pouca beleza e nada de poesia. Pus-me a gritar pelo vazio dela: Como pôde satisfazer-se com tal vulgaridade? Como pôde banquetear-se com tão pouca excelência? Ela nada disse ou diz, surda aos meus protestos e cega à minha súplica.
Correu o mundo e achou-se importante. Lutou pelo reconhecimento como se luta por um príncipe encantado. Achou-o, prostitui-se com ele e se fez fácil. A vi na rua. É fácil tocá-la e cantá-la, sem nenhum eufemismo. Desencantou-me. Em alguns momentos me irritou, em outros, cansou. Como pôde pensar que ainda era bela sendo tomada e tocada por qualquer um e de qualquer modo? Ninguém a reverencia? A vi seguindo seu rumo e ela é vazia sem saber, é previsível, sofre de uma crônica ausência de poesia e é destituída de inteligência teológica. Por que se fez assim? Por que escolheu me entristecer?
Fez tudo em nome de Deus, como o louco que mata e atira os cadáveres no jardim, como se as flores compensassem a morte. O que ela tem a dizer de Deus? O que ouço vem do seu próprio umbigo, do desespero cego de seus amantes pelos holofotes. Vem do que é banal, pois que banalidade é comida apetitosa das multidões. Por isso ela grita, remexe, repete incansavelmente os jargões massificados, como se houvesse uma aliança entre ela e os animadores de programas de auditório. Ela quer fazer tremer o povo... E eu, pobre de mim, só queria tremer diante da beleza.
Ficou assim, repetitiva e tosca, embriagada por um estrangeirismo que a deforma, até seu nome mudou. Ela agora é gospel, essa nomenclatura horrível e impudica e tem a missão de embalar o povo (gado povo, já dizia a canção). Não mais posso com ela. Estou ferido de descrença. O escritor disse que poesia é expressão nua da alma, que ela se faz do que falta ao poeta e que fazer poesia é parecido com parir. Então, se é assim, pergunto sobre ela: quando perdeu sua vocação? Um dia a vi num templo, cantada no orgulho tonto de si mesma (ficou orgulhosa também) e contei os verbos que a conduziam. Ah, os poetas amam os verbos, porque eles dão ação ao que os outros só pensam. Então, contei mais de vinte deles, todos triunfalistas, todos egocêntricos... E nenhum me fez sentir como um copo vazio. Então eu soube, esse era o problema dela: cheia demais, barulhenta demais, egoísta demais... Tudo demais e nada para o nada que sou e o nada dos outros pobres de espírito como eu.
Escrevo para me despedir. Deixo-a e vou por uma estrada à caça de uma música que seja pobre de si mesma, que não se contente com a vulgaridade, que não se prostitua com o reconhecimento, mas que seja corajosa para assumir a imperfeição humana e sua sede de adoração e conforto, que se submeta ao perigo e à alegria da graça e da soberania de Deus. Vou por este caminho outro, sempre à mercê de um som que esteja à altura da excelência de se viver para a glória de Deus e das gostosuras de suas dádivas. Procuro esse outro lado, que não tema a dor, a pobreza, o nada diante do tudo. Já a vi, mas a estrada é estreita, é bom não esquecer. Essa outra, que anda por portões estreitos, ama o anonimato e é como um pedinte na beira da estrada, um pobre que não enxerga direito: Filho de Davi, tenha misericórdia de mim... Assim, adeus a essa ingrata prostituta que a si mesma se chamou de música gospel... Assim, bem vinda essa aragem simples, essa outra, que aproxima o humano do divino.
Eliel Eugênio de Morais

PAU A PIQUE E LAMPARINA
A educação da noiva
Uma noite simples, luar esplendido, daquelas que dá pra ver a luz de prata nas folhas secas do chão. Noite simples tem que ter gente simples, lugar simples, comida nostálgica, dessas tipo torresmo com mandioca. Claro, em tudo isso, há que acrescer uma música simples. Isso cheira a Reino de Deus. E foi assim mesmo. Juntou-se à tudo, uma sanfona, das antigas, o violão e o velho hinário... Só para ser um pouco mais bom (pra não dizer bom demais da conta), a cantoria durou até depois da meia noite, hora perigosa da lua escancarada. Então, fui-me embora para as obrigações do dia seguinte. Fui, mas a alma permaneceu embalada pelos balanços da sanfona.
Se eu pudesse, arrancaria as paredes da casa e as faria de pau a pique, apagaria todas as luzes e acenderia uma só lamparina, tiraria o piso e deixaria o chão batido... Batido chão de tantas memórias. Não. Nem de longe estou pedindo a volta da igreja que conheci na infância, só estou futucando as cócegas que ela ainda me causa. Não é propriamente dela que falo, mas do que a construiu: o evangelho. Sua simplicidade e alcance nunca mudaram. O que me assusta nessa prosa é o tempo. Lembro das minhas inúteis tentativas de interpretar a erudita linguagem (que beleza tal memória) dos hinos que ricocheteavam nos paus a pique. Palavras como sempiterno, veraz, fulgindo, preceptor... E eu lá, estilingue no pescoço, pensando no que aquilo tudo queria dizer. Não pode haver passado tento tempo! A lamparina, as paredes, o chão batido, aquela musica meio desafinada, mas de letra profunda, educando minha linguagem, o evangelho simples, direto, golpeador.
O evangelho simples, direto e golpeador... É assim mesmo. Não mudou. Se mudou, diria o pregador daquela era: estamos no sal. Aquela igreja não foi melhor que a de hoje. Sou pastor e sei bem o que digo. Também essa não faz daquela um dinossauro. Cristo não tem diversas noivas, é uma só, distribuída no tempo e nas características (queria dizer belezuras) de cada uma. Igreja é pessoa, humana e celestial, a que foi lá e a que é cá. A roça de hoje tem cerâmica no piso, luz elétrica e revestimento na parede, é um novo mundo onde a noiva está inserida. E ela deve marcar a geração dos que a fazem como a outra o fez, para que logo ali na frente, na primeira curva do tempo, possa chorar a saudade das bençãos do seu próprio tempo. Foi assim que sucedeu com o grupo de madurões na espetacular noite do começo dessa conversa.
A igreja vive cada tempo, mas o evangelho que a costura é o mesmo. Insistente o mesmo. Foi assim com os primeiros discípulos, foi assim ao longo da história, foi assim que passou pelas lamparinas e pela terra batida da minha infância. É assim hoje e assim será amanhã. E mais, tudo será a mesma coisa: noiva! Se não for, estamos no sal. Todo o que compreende a simplicidade e o golpe do evangelho, amará o tempo da sua construção (poderia dizer educação ou enfeites, parecidos que são) e deixará marcas para as gerações vindouras. Então, o ciclo de se fazer noiva, repetirá, por causa da única riqueza interminável: o evangelho.
É que tudo se parece com um dia. Cada pessoa, cada empo. É como um dia de trabalho. O sol nasce e se poe para todas as pessoas e todas as épocas. O noivo resumiu sua espera a um dia. No tempo do noivo, uns chegavam na roça bem cedinho, outros pouco depois, e depois, depois... Teve gente que chegou já no fim da tarde. Porém, antes da noite cair, todos foram chamados a prestar contas da fatia de tempo que ganharam. Eu sabia, e sei agora, que a roça era o tempo da construção (educação?) da noiva. Amanhã será só para contar as marcas dela para a geração vindoura.
Paz e a gente se encontra pelas noites e sanfonas do Reino de Deus!
Eliel Eugênio de Morais
...Seguiu-me bem distante do seu lugar no céu, e disse em voz amante, achei-te, tu és meu! Assim, ovelha dele sou, e com o seu rebanho vou!

CRAVO E DOCE
Uma conversa sobre
gostos e desgostos
Tem muita doidura no mundo. Tem doidura aceitável, de gente doido, e tem aquelas que veem de onde não poderia. Algumas são preciosas, outras, atrozes. Doidura parece doce. Tem doce gostoso e tem aquele que é desgostoso. Vi a doçura e desgostura na mesma estrada. Outra vez aconteceu nesse percurso de um dia longo com a costa despida no sol do Reino de Deus.
Começou com um potinho de doce, literalmente. A estrada no Mato Grosso parecia não ter fim, o carro embalado, veloz a correr, como bem disse o sertanejo poeta. Veio a fome e paramos, lancei-me ao precioso potinho de sobremesa. Uma deliciosa lambida e fui pego por aquele danificador gosto de cravo. Como podia alguém desgostar um doce daquela maneira? Pus-me a rir e a pensar: como era possível se fazer doce de sabor tal e logo depois estragá-lo com aquela mistura? Misturas podem ser estragadoras...
Voltamos para a estrada e o carro embalado, veloz a correr. Como flui a imaginação na palavra de outro poeta! Foi assim, palavras do Reino brotando das nossas mentes, embaladas na carreira das múltiplas missões. Como é doce viajar nesse gerúndio poderoso que emancipa a vida de todo aquele que vive a inegociável descoberta da glória de Deus. Andamos pela África, chegamos às beiradas da Índia, voltamos ao nordeste do poeta que embala, veloz a correr, bebericamos as gotas do Amazonas, dos ribeirinhos e dos indígenas... Ah, foi aí que puseram o cravo no nosso doce. Isso foi doidura de doido, daquela que não pode vir de onde veio. Danificou o gosto. Sabe essa coisa de danar o sonho com o medo? É desgostoso, cravo sem pudicícia.
Indígenas. Logo depois da Vila de Paredão, lugar de belas montanhas e estrada calma, lugar certo para embalar e por o carro a correr... Bem aí o desgosto bateu de frente, feito cravo ruim em doce bom. Era dia do índio. Dezessete barreiras foram postas por eles na estrada. Barreiras de galhos, troncos, homens bêbados, crianças valentes, jovens provocadores, pintados de guerra e suor no calor da cachaça e do sol ardente. Em todas, tínhamos que pagar. Junto dessa loucura, o estado que semeia contenda entre irmãos na sua equivocada política de proteção. Não vou entrar nessa questão, pois que é pimenta no doce de muita gente. Nunca vi tanta ironia e desrespeito. Tomados pelo medo, avançamos devagar, uma por uma, mastigando um cravo que não queríamos, raspando o fundo de nossas carteiras. Nunca vi uma doidura assim, perigosa, capaz de um corte frontal naquela outra, a doidura inefável de se sonhar os gerúndios do Reino de Deus.
E seria só isso, só um desgosto no gosto da viagem, se uma coisa especial não ocorresse. Foi na penúltima barreira. Não se aproximou nenhum homem grosseiro de porrete nas mãos e nenhum moleque amedrontado e cheirando a cachaça. Foi uma mulher, bela e frágil, trazendo no colo uma criança. Ambas sujas e cansadas, roupas rotas, caras indigentes no ardente sol da tarde Mato-Grossense. Ela não tocou o carro como os outros, mas meu coração foi atingido por sua figura. Desci o vidro e permiti que se aproximasse.
- Pode me dar um Real? – Sussurrou.
Eu, a despeito do medo que nos assolava, sorri, e ela sorriu de volta. Ela ria de medo e vergonha, eu ria porque adorava seus olhos e porque temia seu povo. Vi o rosto da criança, perfeito, uma lindura sem igual, também suja e cansada. Dei-lhe o dinheiro, mais do que ela pediu. Ela sabia que se eu não desse, a viagem não seguiria, mas creio que soube que não dei pela raiva, dei por amor, como um recado. Penso até que ela leu a adoração no meu rosto. Ela agradeceu e eu também. Eu pensava que se ela soubesse o quanto amava seu povo e, mais ainda, o quanto Deus os amava naquele gerúndio que faziam agredindo, desrespeitando, ironizando, absurdando... Certamente não poriam cravo tão impudico nas doces intenções da minha alma para com eles.
Existe cravo bom? E desgosto bom? O rosto dela foi um tipo de doçura no meio da doidura. Estou em casa e doce daqui não tem mistura, porém, algo semelhante fica nesse gerúndio que já conheço: adoçando e amargando, sarando e doendo... São os olhos de uma índia perdida, o riso envergonhado dela, o filhinho grudado na cacunda, feito africano, pedindo... E eu com essa coisa peculiar do Reino de Deus, sabendo que essa história há de me custar bem mais que um Real. O que ela pede? O Reino de Deus é carro embalado, veloz a correr... Sei que puseram cravo no meu doce.
Eliel Eugênio de Morais
FRIO E CALOR
Faces da mesma missão
De repente, amo o sol. Sei que ele pode me castigar mais tarde, ou amanhã. Já fez isso em anos anteriores. Toda história de amor é conto de perdas e ganhos. Porém, hoje, o amo assim mesmo, coisa parecida com as decisões do Reino. Recordo-me da oração que fiz ontem à noite:
“Obrigado Senhor, pelo frio. O frio é do Senhor e eu sou do Senhor. Então, tudo está certo. Porém, que bom seria ter o calor, que é tão mais coerente com essa terra. Sei que algumas coisas da missão também soam incoerentes, então, fico assim, desejando a normalidade do calor”.
O frio judiou a noite inteira. Era madrugada quando saímos e ele aumentou à medida que avançávamos, até me fazer tremer. O barco rompendo a lindura das primeiras horas do amanhecer e vi os movimentos embrionários da vida diurna. Mas, o vento e o frio eram cortantes. Foi aí que o sol apareceu. Brotou no horizonte aspergindo luz e calor, e eu o amei. Sei que sem o vento e a friagem da noite, quando for lá pela metade do dia, esse mesmo sol cobrará da nossa pele a quentura gostosa de agora.
Assim é o Reino e as missões. Primeiro estávamos na aldeia e na minha mente ainda fluem os sons de uma língua que me parece impossível. Com ela, rostos, faces belas de homens, mulheres e crianças. Dias de um tempo inesquecível. É preciso entender que inesquecível é aquilo que Deus eterniza. Eternizado é, então, o efêmero que Deus separa e dá aos humanos. Por isso, esse tempo se fez inesquecível. Deus separou um pedaço de línguas, de rostos e sons, e nos deu, como uma fatia da quentura do sol dessa manhã.
O Reino é assim. Não podemos reter sua inteireza, somos pequenos demais para tal. Por isso, o que vivemos são pedaços. Todos os povos são do Reino, como o frio e o calor, que são apenas faces da multiplicidade dele, como a noite e o dia, o riso e o choro, gentes e coisas... E tudo isso são dádivas.
O Guaporé e seus povos são outro pedaço dessa mesma grandeza. Era ainda madrugada quando adentramos suas águas. Sem poeira, sem a quentura da aldeia, atirados ao vento e ao frio do “sur” que nos ameaça. O texto partilhado nessa manhã foi o salmo bíblico que trata do óleo e do orvalho, figuras da comunhão e da cura, que nem o sol quando apareceu no romper do dia.
O Reino é deliciosamente assim, o frio negociando com o calor, a poeira cedendo às águas, alegria que nasce da dor, ganho que nasce da perda, uma coisa nascendo dentro da outra. Entender isso não me parece difícil, basta adentrar um povo, tocar uma família, beijar uma pessoa. A alegria nasce quando colocamos os pés na terra do outro, seja ele indígena africano ou ribeirinho, e a dor é só a face do preço necessário. Isso são coisas normais a quem percebe a pobre alma do outro. O que tem em comum nessas pobres almas? Solidão, rancor, sentimentos repetidos insistentemente até se tornarem comuns, pecados comuns, tabus repetidos de uma geração para outra.
A beleza do não alcançado tem preço, mas também tem cura. O evangelho agrega a Jesus pessoas de todas as culturas e lugares, mas precisa ser levado por alguém. Por isso é interpessoal e transcultural. Isso também tem beleza e preço. Missionar é tremer de frio na beira do rio e suar cascudo de poeira e seca na aldeia. Tudo é do Reino e os preços são distintos. Sendo do Reino, tudo é bom. Missão é saber que todas as consequências dela são do Rei e que estamos inseridos em todas elas. Todo caminho do Reino tem perda e ganho, como o sol que aquece agora e judia depois. A missão é feita desse mesmo valor.
Eliel Eugênio de Morais
Rio Guaporé, 18 de julho de 2017.
Descendo pelo barranco vermelho

